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Entrevista: ‘As Forças Armadas não devem ter voz alguma em um ambiente político’, diz pesquisador

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A provável nomeação de um ministro da Defesa sem o debate com a sociedade sobre o papel dos militares no futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva seria um retrocesso democrático – e um sinal do medo das Forças Armadas que persiste no mundo político, afirma o pesquisador Juliano Cortinhas em entrevista ao Intercept.

O espaço para tal debate, o grupo técnico da Defesa, era um entre os mais de 30 anunciados inicialmente pelo coordenador de transição, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin. Esses grupos, chamados internamente de GTs, reúnem políticos, acadêmicos, servidores públicos e especialistas que avaliam a situação em que cada área será deixada por Jair Bolsonaro e sugerem caminhos e medidas para o futuro governo.

Ocorre que o GT da Defesa nunca foi criado. E, diante do anúncio de que os comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes; da Marinha, Almir Garnier Santos; e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, devem deixar seus cargos ainda em dezembro – num claro gesto de insubordinação –, Lula vem sinalizando que irá optar por uma saída alternativa.

A ideia é nomear nos próximos dias um ministro civil para a Defesa, que iria assumir sem um diagnóstico preparado pelo GT de transição e tratar diretamente com Lula da nomeação dos comandantes das forças – radicalizadas à direita antes e durante o governo Bolsonaro. “É a pior forma de se lidar com um tema que hoje é tão delicado”, criticou Cortinhas. Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a UnB, Cortinhas é coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional e pesquisador de políticas de Defesa. Também trabalhou no Ministério da Defesa entre 2013 e 2016, no governo de Dilma Rousseff.

“A Defesa é uma política pública do governo federal como tantas outras. O GT de transição é um momento em que os eleitos dialogam com a sociedade para entender quais políticas públicas virão. Se não tivermos esse GT, estamos alijando a sociedade do processo”, explicou o professor.

Para Cortinhas, há um motivo para a excessiva cautela demonstrada por Lula – e compartilhada pela classe política em geral, à exceção da crescente extrema direita brasileira: medo dos fardados. “Existe um medo dos militares entre os civis, e isso já demonstra que as Forças Armadas têm força política. E vão continuar tendo enquanto os civis tiverem medo de exercer o comando sobre elas”.

Aí está justamente o problema, na visão do pesquisador. “A hierarquia é o princípio basilar das Forças Armadas. Elas precisam receber ordens dos civis. E nós, como civis, não temos dado ordens, temos deixado-as autônomas. As Forças Armadas brasileiras gozam de autonomia excessiva, e isso é um erro dos civis. Os militares não estão recebendo ordens claras e delimitadas apenas ao seu papel constitucional”.

Na entrevista, Cortinhas fez ainda uma crítica à imprensa, que nos últimos dias se prestou ao papel de consultar altos oficiais – do Exército, principalmente – sobre os nomes civis ventilados para o Ministério da Defesa. “A imprensa não entende qual é o papel das Forças Armadas, que elas não devem ter voz alguma no ambiente político. Oficiais das Forças Armadas não devem opinar sobre montagem de governo. O papel deles não é dizer: ‘Desse eu gosto’, ‘Esse eu aceito’. É obedecer a quem quer que seja escolhido”.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

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“Os militares precisam ser lembrados de que saíram do lugar devido”, avaliou o pesquisador Juliano Cortinhas em entrevista ao Intercept. “Se deixarmos tudo como está, eles vão continuar fora do lugar”.

Foto: Reprodução/University of Virginia

Intercept – O governo de transição tem sinalizado que desistiu de criar um grupo de trabalho sobre o setor de Defesa, como os que instalou para praticamente todas as áreas da administração pública. Isso é ruim? 

Juliano Cortinhas – Existe uma lei que regulamenta a transição, aprovada em 2002, antes da transição do Fernando Henrique Cardoso para o primeiro governo de Lula. Agora em novembro, saiu uma portaria assinada pelo Alckmin delimitando como se daria esta transição específica [entre Bolsonaro e Lula]. E Alckmin, como coordenador da transição, naquele momento decidiu criar um grupo de trabalho, um GT, sobre a Defesa. Esse é um tema extremamente relevante na configuração atual da nossa política. Porque, com o Bolsonaro, os militares ascenderam a um papel de protagonistas na política, o que é completamente absurdo.

A Defesa é uma política pública do governo federal como tantas outras – Saúde, Educação, Cultura etc. É um tema que tem que ser discutido com a sociedade. Faz parte do debate público entender o que a sociedade espera do nosso aparato de defesa, no qual estão incluídas as Forças Armadas. Então, veja: as Forças Armadas são executoras, mas não têm o papel de definir a política pública de Defesa. Isso cabe aos governantes eleitos e à sociedade. E o GT de transição é um momento em que os eleitos dialogam com a sociedade para entender quais políticas públicas virão. Se não tivermos esse GT, estamos alijando a sociedade do processo. É a pior forma de se lidar com um tema que hoje é tão delicado. Em vez disso, haverá um ministro ainda não definido, nem conhecido que vai conversar diretamente com os comandantes militares, num diálogo fechado que exclui a sociedade.

Tem algo que você mencionou que é importante esmiuçar: por que a política não é lugar para militares? Por que devemos tirá-los da política?

Tem dois aspectos importantíssimos. O primeiro é a forma como as Forças Armadas funcionam, que nada tem a ver com o funcionamento da política numa democracia. O princípio basilar do aparato militar é a hierarquia. As Forças Armadas não funcionam bem se não existe uma hierarquia sólida. Porque elas só existem para fazer a guerra e, na guerra, aquilo que há de mais importante para um indivíduo, a sobrevivência, está em jogo. Então, quando um comandante manda seu comandado ir matar um inimigo, de peito aberto, correndo o risco de tomar um tiro, se espera que ele cumpra a missão. Não tem espaço para debate. Nas Forças Armadas, só o que existem são ordens a serem cumpridas, e é essencial que seja assim. É por isso que elas funcionam a partir de um espírito de corpo em que não há espaço para o questionamento. O militar, desde o início de sua formação, é ensinado a trabalhar hierarquicamente: ou ele está numa posição de comando, ou ele está obedecendo alguém. Ele nunca está em posição de criticar autoridades, de contrapor ordens.

Já a política, numa democracia, é fundamentalmente o debate de ideias. E, quanto mais amplo ele for, mais transparente e adequada é a construção de uma política pública. Não existe ordem: é pelo debate que parte de um amplo leque de possibilidade para que uma autoridade democrática chegue  a suas conclusões.

‘Se eu digo que a política de Defesa está ruim, é uma opinião. Quando um militar diz isso, fala como uma autoridade armada’.

Segundo ponto: os militares detêm as armas. Já a política não se faz com armas, mas com ideias. Então, quando alguém que tem atrás de si as armas fala em redes sociais – como Hamilton Mourão vem fazendo – ou aos microfones da imprensa que o processo eleitoral foi ilegítimo, ilegal, temos claramente uma ameaça. Se eu, Juliano, professor da Universidade de Brasília, digo entender que a política de Defesa está mal construída no Brasil, é uma opinião. Quando um militar, principalmente da ativa, mas também os da reserva, dizem isso, falam a partir da posição de uma autoridade armada.

E há ainda um último ponto: existe uma ilegalidade acontecendo diariamente no Brasil. Há uma lei específica, que regula a carreira e a atividade dos militares, e ela diz que quem vai para a reserva não pode mais usar o posto para se posicionar. Não pode falar mais como “general” Mourão, “general” Heleno, “general” Pazuello, “general” Villas Bôas, entre tantos outros. Isso é uma ilicitude, que deveria automaticamente receber punição. Mas todos esses militares da reserva que trabalham com Bolsonaro usam os seus postos para fazer política. É uma forma de intimidação, de trazer as Forças Armadas para avalizar a opinião que eles estão dando. Ilegalmente. Isso deveria gerar um processo administrativo nas Forças Armadas. Só que não acontece, porque elas só punem gente de esquerda.

As Forças Armadas – principalmente o Exército – voltaram a se meter na política, num processo que culminou na eleição de Bolsonaro. Existe, em parte da sociedade, a expectativa de que militares que exacerbaram seu papel institucional e cometeram crimes como agentes políticos sejam responsabilizados. A transição na Defesa sem debate atrapalha essa possibilidade?

Veja, as punições são extremamente necessárias. Mas não será o poder Executivo a fazer isso. Cabe ao Judiciário. E aí, a gente tem outro problema: os militares têm um sistema de proteção enorme e dele faz parte um poder Judiciário próprio, a justiça militar. O que é um absurdo, porque o Brasil não entra em guerras desde 1870, no Paraguai. Então, não cabe haver uma justiça militar, porque os crimes que os militares cometem são na imensa maioria crimes comuns. Há alguns dias, tivemos um assassinato dentro do prédio do Ministério da Defesa. Não foi um crime militar, mas um crime comum cometido por um militar. Mas será levado à justiça militar.

Com isso, resta a possibilidade de punições administrativas, a partir de processos administrativos. E aí temos a decisão atual do governo de transição sobre a Defesa, que manda um sinal ruim. As nossas Forças Armadas estão estruturadas ideologicamente, hoje. E tirar elas desse comprometimento ideológico [com a direita] é um processo, requer tempo, não vai se fazer da noite para o dia. E aí é que seria importante termos o GT. Ali seria o lugar de se discutir quais são as prioridades do novo governo. Foi publicado recentemente um documento de um pesquisador do Ipea chamado Rodrigo Fracalossi. É muito interessante, concordo com várias prioridades que ele elenca ali. E o Ipea é um órgão oficial do governo que serve justamente para questionar e sugerir políticas públicas. O Fracalossi era um nome que deveria estar sendo consultado ou fazendo parte do GT de transição. Um entre tantos outros, como os de professores e professoras que pesquisam há anos, muitos há décadas, o tema da Defesa.

‘Caso um oficial discorde e não queira cumprir as ordens do novo chefe civil, a porta de saída é serventia da casa’.

A minha opinião, que formei após ter trabalhado no Ministério da Defesa por três anos e ter estudado o tema por muito tempo, é que precisamos reestruturar a pasta. Por quê? De novo, volto ao ponto da hierarquia: os militares trabalham a partir dela. Então, se a hierarquia não for clara, eles tomam os lugares que eles querem. E vivemos um momento em que os militares precisam ser lembrados de que saíram do lugar devido. Se deixarmos tudo como está, eles vão continuar fora do lugar.

A reestruturação do Ministério da Defesa precisa se dar a partir de uma definição de funções das Forças Armadas, com base no que as democracias liberais fazem ao redor do mundo. Temos que seguir o exemplo de França, Reino Unido, Estados Unidos, dos países da OTAN em geral, em que as Forças Armadas operam a Defesa. Mas em que o ministério comandado por civis, por atores políticos, e não militares, pensa politicamente e gerencia a Defesa. Porque os civis, e não os militares, exercem a política – a não ser que os militares sejam eleitos para cargos políticos. Mas, para isso, precisam, além de estar na reserva, concorrer como indivíduos. Só que Mourão só foi candidato [a vice-presidente, em 2018, e a senador, em 2022] porque é general, e não porque é um ator político relevante. Heleno só está no cargo de ministro porque é militar, e não porque é político. Então temos um erro já no início do processo.

Também precisamos consolidar uma carreira civil no Ministério da Defesa, que hoje não existe. Por consequência, hoje a pasta é totalmente ocupada por militares, mesmo sendo um órgão político, e não militar. Precisamos de civis, aprovados em concurso público, dedicados a pensar a longo prazo a política de Defesa, estabelecer prioridades Por exemplo: diante da configuração do nosso território, o que é mais importante: termos um submarino de propulsão nuclear ou os blindados em que o Exército anunciou que irá gastar bilhões de reais? Se o ministério for ocupado por militares, os do Exército vão defender sua força, assim como os da Marinha. Quem pode olhar o que é melhor para o país é um civil.

O militar típico brasileiro, por sua formação, pensa primeiro na própria carreira, e depois, em sua força, pois dela depende a carreira. Ele passa a vida inteira dentro da própria força, só vai lidar com militares de outras forças quando ele chegar ao generalato, quando eventualmente for servir no Ministério da Defesa.

O governo de transição também sinaliza que irá escolher os comandantes das Forças Armadas usando como critério a antiguidade. É o critério adequado? Fazer isso não é, simplesmente, cumprir com o desejo dos militares? 

Antes de responder a pergunta: vejo um erro profundo, cometido diariamente pela imprensa, em ouvir os comandantes das forças ou qualquer militar sobre a constituição do GT de Defesa ou do futuro governo. Militar não tem que dar opinião política a não ser quando for consultado pela cadeia de comando. Ele não pode falar à imprensa, que não deveria ouvi-los. A imprensa tem parte nesse conjunto de erros a que assistimos no Brasil. Ela não entende qual é o papel das Forças Armadas, que elas não devem ter voz alguma no ambiente político. Mas vai lá e coloca o microfone na boca do general, pergunta sobre os nomes cogitados para o Ministério da Defesa. Está errado. Militares não precisam nem devem ser consultados sobre isso. A imprensa está dando uma voz indevida a oficiais das Forças Armadas, que não devem opinar sobre montagem de governo. O papel deles não é dizer: “Desse eu gosto”, “Esse eu aceito”. É obedecer a quem quer que seja escolhido. Caso um oficial discorde e não queira cumprir as ordens do novo chefe civil, a porta de saída é serventia da casa. E os militares têm preparo, saúde, uma grande aposentadoria e condições para buscar novas carreiras.

Sobre os critérios de escolha: os comandantes das Forças Armadas devem ser escolhidos pelo compromisso com o cumprimento das ordens que eles irão receber, que por sua vez serão definidas pela política que o novo governo quer para a Defesa. As Forças Armadas deveriam ser retiradas de qualquer atuação doméstica, seja apoio em segurança pública, seja levar água para o Nordeste colaborando na transposição do rio São Francisco, policiar as zonas de fronteira. Essa seria a situação ideal. “Ah, mas não tem quem faça”. Então precisamos constituir instituições para isso, reforçar a Polícia Federal. A gente precisa das Forças Armadas sem quaisquer atribuições dentro do nosso território. Elas só atuam aqui para se preparar para, eventualmente, atuarem fora dele. Nesse sentido, a escolha dos comandantes deve ser de acordo com o compromisso de exercerem única e exclusivamente o papel de defesa quanto a ameaças externas.

‘As Forças Armadas brasileiras gozam de autonomia excessiva, e isso é um erro dos civis’.

Se não existir nenhum general de quatro estrelas que queira fazer isso, daí a gente precisa reformar as Forças Armadas, reconstruir todo o processo de formação dos militares brasileiros, que começa pela educação. Eles precisam entender qual é o nosso papel no mundo, a sociedade brasileira, que existem outras prioridades orçamentárias definidas politicamente pelos civis. E tudo isso precisa ser construído de cima pra baixo. Porque, de novo, a hierarquia é o princípio basilar das Forças Armadas. Elas precisam receber ordens dos civis. E nós, como civis, não temos dado ordens. Temos deixado-as autônomas – esse é o conceito que utilizamos na discussão das relações civis-militares.

As Forças Armadas brasileiras gozam de autonomia excessiva, e isso é um erro dos civis. Os militares não estão recebendo ordens claras e delimitadas apenas ao seu papel constitucional. Existe um medo dos militares entre os civis, e isso já demonstra que eles têm força política. E vão continuar tendo – e exercendo papéis que não são delas – enquanto os civis tiverem medo de exercer o comando sobre as Forças Armadas.

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