São 22 quartos com vista para o mar em uma praia privativa. Um ginásio e três piscinas completam a área externa da mansão, localizada em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. Para chegar confortavelmente, há um heliponto. Os quartos superiores têm banheiras e todos são equipados com camas king size e televisão. A mansão espetacular, próxima à praia do Veloso, foi colocada à venda por R$ 25 milhões.
No papel, a propriedade está em nome de Vicente De Noce, empresário e economista, morto em abril do ano passado. A prefeitura de Ilhabela, no entanto, afirma que a mansão pertence ao Apóstolo Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, segundo documentos enviados ao Intercept por um empresário que tem relação com a instituição.
Segundo a prefeitura, a mansão em Ilhabela é parte do patrimônio da Igreja Mundial do Poder de Deus. Valdemiro teria ocultado seus bens em nome de terceiros para evitar o pagamento de dívidas, me disse o empresário, cujo nome não será revelado para evitar represálias. Ele é um dos credores da igreja e está sem receber valores pelo aluguel e reforma de um grande templo da Mundial na Grande São Paulo. Segundo ele, a dívida, acumulada desde 2018, chega a R$ 5 milhões.
Foi a própria prefeitura de Ilhabela que apresentou provas que a mansão realmente pertence a Valdemiro. Essa informação está documentada em uma ação de execução fiscal movida, em 2015, para cobrar dívidas de IPTU atrasados do imóvel. Na ação, a prefeitura mostra que, até junho de 2021, os débitos com a administração municipal somavam R$ 2,7 milhões. Somente o IPTU de 2022, não incluído na conta, é de R$ 147 mil.
Prefeitura tenta cobrar dívidas de impostos – e atribui a mansão a “uso recreativo” do Apóstolo.
O imóvel também recebeu multa por danos ambientais, por ampliação irregular. A penalidade foi encaminhada à Igreja Mundial do Poder de Deus, classificada como “infratora”.
Ao executar a dívida, a prefeitura de Ilhabela registrou oficialmente que, de fato, “a atual proprietária do imóvel é a pessoa jurídica da Igreja Mundial do Poder de Deus”.
Em outro trecho do documento, o órgão municipal constatou “se tratar de imóvel de uso recreativo (veraneio) e pessoal do pastor Valdemiro Santiago, cujo patrimônio se confunde com o da própria Igreja Mundial do Poder de Deus”.
A partir disso, o município considerou “legítimo o direcionamento da obrigação tributária a quem efetivamente fique como possuidor do imóvel”. No dia 5 de setembro, a juíza Isabela Carolina Miranda Rodrigues, do Fórum de Ilhabela, pediu o bloqueio de bens da parte executada, pelo prazo de busca de 30 dias.
Vista aérea do imóvel, com praia e píer particular e heliponto.
Foto: Reprodução/Facebook
Um corretor da imobiliária de Ilhabela também confirmou, por áudio, que a mansão pertence a Valdemiro. O empresário que enviou a documentação ao Intercept disse ter estranhado a inclusão da propriedade nas conversas e negociações que teve com representantes da igreja para tentar receber seu aluguel atrasado, já que o imóvel teria um valor muito maior.
Além da mansão, um bispo da Igreja Mundial ofereceu ao credor um barco e um trio elétrico para liquidar as dívidas. O barco de Valdemiro que foi ofertado ao empresário leva o nome de Franciléia, a mulher do apóstolo. É avaliado em R$ 3,5 milhões, valor pelo qual foi colocado à venda no site de comércio eletrônico Mercado Livre.
Já o trio elétrico chamado Bradoque, que pertenceu à banda Chiclete com Banana e brilhou no carnaval da Bahia, foi estimado em R$ 2,5 milhões. O veículo ainda hoje anima eventos religiosos ao estilo da Marcha para Jesus e está em nome da empresa Interteve Serviços Ltda, ligada à Rede Mundial, grupo de comunicação ligado à Igreja Mundial.
Aos 16 anos, Valdemiro começou a trabalhar na Igreja Universal do Reino de Deus. Depois, fundou a sua própria – e virou inimigo de Edir Macedo.
Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
A nova empreitada
Com seu inseparável chapelão de vaqueiro, voz rouca e o sotaque caipira inconfundível, o apóstolo Valdemiro Santiago tornou-se um pregador famoso e popular no Brasil a partir dos anos 1990. Em seus cultos, prometia até que pessoas com deficiência poderiam largar suas cadeiras de roda e voltarem a andar.
Cenas desse suposto milagre – não comprovado – foram exibidas exaustivamente durante a madrugada na TV para fiéis insones. Em 2020, Valdemiro pediu ofertas de R$ 1 mil aos fiéis em troca de grãos de feijão ungido que, segundo ele, curariam a covid-19. Ao chorar, enquanto pedia doações em seus cultos, o apóstolo virou meme nas redes sociais e se transformou num dos personagens preferidos de humoristas e imitadores.
O menino pobre nascido em Palma, zona da mata mineira, a 360 km de Belo Horizonte, perdeu a mãe aos 12 anos. Trabalhou na roça, foi pedreiro e morou na rua. Aos 16 anos, foi levado a um templo da Igreja Universal do Reino de Deus. Virou obreiro, pastor, depois um bispo carismático, do tipo que arrastava multidões. Foi um dos campeões na arrecadação de dízimos e ofertas na Universal, até se desligar em 1998 para montar a sua própria igreja. Nascia ali a Mundial do Poder de Deus – e Valdemiro tornou-se a partir daí um inimigo íntimo de Edir Macedo.
Para se vingar, o antigo líder usou sua emissora de televisão, a Record, em 2012, para mostrar que o apóstolo é um homem rico e poderoso, dono, à época, de uma fazenda no Mato Grosso, na região do Pantanal, avaliada em R$ 29 milhões, além de avião próprio e mais de cinco mil cabeças de gado.
As terras de Valdemiro “a perder de vista”, de acordo com a Record, seriam equivalentes naquele momento a 13,4 mil Maracanãs. As fazendas estavam em nome da empresa W.S. Music Ltda, de propriedade de Valdemiro e sua esposa, a bispa Franciléia de Oliveira.
Hoje, no entanto, a Igreja Mundial passa por uma enorme crise financeira.
Só no estado de São Paulo, a Mundial responde a cerca de 740 ações – quase todas por falta de pagamento. Um dos credores, durante reunião para tentar acordo, disse ter ouvido que a instituição estaria com as contas zeradas. Ainda segundo ele, os recursos vindos dos dízimos e ofertas estariam sendo transferidos para uma nova instituição religiosa, a Igreja Mundial Mais que Vencedores. Essa denúncia é feita também por ex-pastores em ações trabalhistas movidas na Justiça.
O apóstolo Valdemiro teria recorrido a esta manobra abrindo um novo CNPJ para evitar que a justiça confisque os valores depositados na conta da Mundial do Poder de Deus, em razão dos inúmeros processos por cobrança de dívidas.
A Igreja Mundial Mais que Vencedores informa ter como sede apenas uma sala – e não um templo – na rua Borges de Figueiredo, na Mooca, zona leste de São Paulo. Tem como presidente o bispo Jorge dos Reis Pinheiro, ex-deputado federal e cunhado de Valdemiro. O endereço eletrônico é o mesmo da Mundial do Poder de Deus. Na internet, não há informações sobre a existência de templos dessa instituição em funcionamento.
O empresário que falou ao Intercept chegou a encaminhar uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo contra a igreja, arquivada por falta de provas. O empresário disse que não anexou os documentos à ação propositadamente por receio de torná-los públicos.
‘Pastores estão sem receber salários, mas o Valdemiro esbanja luxo em sua festa de aniversário’.
Em maio, a Justiça de São Paulo autorizou a penhora de 25% dos dízimos e ofertas da igreja para pagar dívidas de aluguéis atrasados. A juíza Ana Claudia Dabus nomeou um administrador judicial para ficar responsável pela arrecadação dos valores angariados nos templos, em dinheiro vivo, até atingir o valor de R$ 117 mil, o montante de uma dívida com proprietário de imóvel, na zona norte de São Paulo.
Na terça-feira, 29, a justiça penhorou também 50% de um apartamento de propriedade de Valdemiro na cidade de Rondonópolis, em Mato Grosso, avaliado em R$ 2 milhões. A penhora foi decidida pela juíza Beatriz Cabezas em processo movido por um outro proprietário de imóvel que cobra dívidas em aluguéis e IPTU da igreja, no total de R$ 360 mil. A juíza também disse, na sentença, haver indícios de que os bens da igreja se misturam com os do apóstolo. A defesa de Valdemiro contestou afirmando não haver “qualquer indício de fraude’ e que as acusações seriam “alegações falaciosas sem nenhuma respaldo na realidade”. Mas a Justiça não aceitou a argumentação.
Religiosos avaliam que a Mundial quebrou em razão de supostos desvios de dinheiro praticados por membros da própria instituição, que teriam lesado Valdemiro – segundo denúncias publicada na imprensa –, contratos milionários com emissoras de TV para a compra de horário e a investimentos equivocados na construção de grandes templos. A Mundial alega que o fechamento das igrejas, em 2020, devido à pandemia do coronavírus, provocou uma queda brusca em sua arrecadação.
Os credores da Mundial dizem que o apóstolo Valdemiro estaria hoje se beneficiando da alegada crise financeira e dos calotes para pedir mais ofertas e doações aos fiéis, a fim de que a sua instituição religiosa não feche e os seguidores não fiquem sem receber a pregação religiosa e o conforto espiritual. Mas os recursos obtidos com dízimos e ofertas estariam sendo transferidos para a Igreja Mundial Mais que Vencedores, que só existe no papel.
O ex-pastor Marcelo Roque, ex-Universal, disse em seu canal no Youtube, no início de novembro, que pastores da Mundial em Canoas, no Rio Grande do Sul, estariam sem receber salários há quatro meses. Roque costuma reproduzir em suas redes sociais relatos e denúncias de pastores, obreiros e fiéis de igrejas como a Universal e a Mundial. Segundo ele, proprietários estão pedindo de volta os imóveis onde estão instalados templos da Mundial devido a aluguéis atrasados e os pastores “passando fome e sendo despejados”.
“O dinheiro entra, mas está faltando para os pastores comerem e pagarem contas básicas. Pastores estão sem receber salários, mas o Valdemiro esbanja luxo em sua festa de aniversário”, afirmou Roque. “Valdemiro, cadê o dinheiro do dízimo? Cadê as ofertas”, perguntou.
O Intercept procurou a direção da Igreja Mundial, mas não conseguiu contato. Funcionários da igreja alegaram não ter alguém disponível para atender e disseram não poder fornecer um e-mail para que perguntas fossem encaminhadas à instituição religiosa. O Intercept também enviou os questionamentos ao deputado estadual Ricardo Arruda, do PL do Paraná, missionário ligado à igreja, que prometeu encaminhar o pedido à direção. Mas não houve retorno.
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