Jair Bolsonaro foi ovacionado ao falar em templo da Assembleia de Deus em outubro.
Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress
O governo Lula tem se mostrado resistente à criação de uma pasta com foco na religião e seu papel político no fortalecimento da democracia – algo que já foi feito em países como Colômbia, Chile e México, que contam com alguma espécie de secretaria nacional para tratar do assunto. A nova gestão segue resumindo a articulação com os cristãos a ter alguém que “fale pelos evangélicos” e que dialogue principalmente com as raposas da Bancada Evangélica ou os barões da fé pastores das megaigrejas. Isso é um erro.
Como os ataques terroristas de cunho golpista em Brasília provaram, a destituição do governo Jair Bolsonaro e de seus pastores ultraconservadores instalados no Executivo federal, com Damares Alves à frente, não nos devolverá a democracia e a diversidade em condições de segurança. Mas é importante lembrar o seguinte: o espírito da radicalização, que segue vivo e atuante, voltará em parte para sua incubadora – as muitas igrejas e comunidades virtuais evangélicas e católicas dispostas a cultivá-lo, aguardando o momento de ele reaparecer e reivindicar novamente o lugar de privilégio e supremacia de um grupo que vê a si mesmo como a “maioria” e acredita que, como tal, sua crença política, sua concepção de moral e sua religiosidade devem ser impostas.
A extrema direita cristã brasileira criou laços internacionais que o Ministério das Relações Exteriores, bem como o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, terão de rever com atenção para tirar o Brasil da agenda extremista motivada pela imposição da moral inventada por supremacistas. É urgente que o Brasil deixe de ser signatário da Declaração de Consenso de Genebra, que nos coloca ao lado não apenas de países que criminalizam brutalmente o aborto, mas também dos que abandonaram há muito o compromisso com a democracia, como a Hungria e a Rússia, ou seguem abertamente como ditaduras políticas ou religiosas, como a Arábia Saudita.
Não podemos esquecer que o “ovo de serpente”, isto é, o processo de maturação do impeachment de Dilma Rousseff e da ascensão de Jair Bolsonaro e sua extrema direita, teve uma participação fundamental de lideranças evangélicas ultraconservadoras e suas igrejas.
Em julho de 2015, a capela do Seminário Batista do Sul do Brasil, na Tijuca, Rio de Janeiro, estava lotada de pastores e lideranças evangélicas batistas para ouvir o que o então procurador da República Deltan Dallagnol tinha a dizer sobre a projeto das “10 Medidas Contra a Corrupção”.
Começava ali uma adesão que foi se tornando cada vez mais crescente e influente ao papel de igrejas e evangélicos no processo de corrosão do governo Dilma, diretamente ligado ao enfraquecimento da democracia brasileira e à abertura do caminho para uma extrema direita cada vez mais confiante. Foi nos templos e a partir deles que o projeto de Dallagnol ganhou grande parte de suas assinaturas.
A maior adesão evangélica a um presidente foi parte do estrago causado à democracia.
A peregrinação do procurador – ele mesmo um evangélico batista – por diversas igrejas pelo país, divulgando a operação Lava Jato e o pacote das 10 medidas foi uma estratégia poderosa. Após suas palestras ou participações em cultos, cabia às igrejas manterem vivo o sentimento de “indignação” contra a corrupção na qual o Partido dos Trabalhadores teria, segundo Dallagnol, afundado o país. E, obviamente, essa conivência com a corrupção tinha também um sentido moral, razão pela qual um projeto de governo de esquerda no país deveria ser interrompido. Ou pela eleição, ou pelo impeachment.
A sinergia entre igrejas e pastores extremistas e a presidência da Câmara dos Deputados, nas mãos de Eduardo Cunha, um evangélico ultraconservador, também foi um elemento importante na “força popular” que consentiu a todos os atropelos democráticos e legais para que Dilma fosse derrubada. E para que as portas estivessem abertas a figuras que declaravam votos a favor do impeachment enquanto saudavam militares ditadores e a tortura.
Durante o segundo turno de 2018, a interferência das lideranças evangélicas de extrema direita não se limitou apenas às pregações dominicais de suas igrejas. Milhões de crentes receberam por boletins, jornais impressos e, principalmente, rádios, a imposição do medo para não votar em Fernando Haddad.
Em 20 de outubro de 2018, eu publiquei aqui no Intercept uma matéria resultante de duas semanas de escuta do famoso programa evangélico “Debate Melodia”, na rádio carioca Melodia FM, em que todos os temas foram pensados de maneira a minar a adesão do público evangélico à candidatura do petista e a escolher Jair Bolsonaro como um candidato “comprometido com os valores cristãos”.
O restante da história, ainda muito recente, nós conhecemos bem. A maior adesão evangélica a um presidente contribuiu significativamente para a vitória de Jair Bolsonaro e foi parte do estrago causado ao país e à democracia brasileira.
Não descuidar do papel da religião na esfera pública não significa vê-la como um mal em si mesma.
É por esse histórico nocivo silencioso de como a extrema direita conta com as igrejas de lideranças ultraconservadoras como incubadoras que o novo governo, as forças progressistas da sociedade e os defensores de direitos humanos e da democracia não podem descuidar do papel da religião de maneira geral, e dos evangélicos ultraconservadores em particular, na esfera pública.
Mas isto não significa ver a religião e as igrejas como um mal em si mesmas. Na verdade, significa que é possível e necessário virar a chave voltada para o uso religioso feito pela extrema direita para a do uso feito pelos que celebram a democracia, os direitos humanos, a igualdade e a diversidade.
Este seria um ótimo momento para pensar projetos que desafiem mais igrejas a se comprometerem a ser parte da expansão da democracia, da garantia dos direitos individuais, da liberdade e da defesa da diversidade e pluralidade do país. Se o novo governo pretende prosperar e estar pronto para os desafios à democracia brasileira, será fundamental estar atento ao papel crucial exercido pela religião na realidade política e social. Isso pode ser feito de maneira propositiva, enxergando o potencial de mobilização e fortalecimento das pautas de justiça social e igualdade que a religião pode ter. É preciso tomar a frente desse debate, em lugar de sermos surpreendidos com um novo, e mais nocivo, formato de radicalização.
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