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Vovô viu o golpe

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Vovô viu a uva… uma ova! Na nova cartilha de alfabetização adotada pelo bolsomilitarismo, vovô viu o golpe e se lambuzou com ilusões de um viúvo de 1964. O perfil predominante nas ações de 8 de janeiro é do tiozão da padaria, na faixa dos 50 anos, mas foi o idoso fanatizado que serviu de escudo no acampamento de Brasília e deu uma feição piegas, fofa e espontânea à emboscada terrorista — imagem usada pelos organizadores para manipular a opinião pública.

Até a principal fake news dos golpistas, espalhada pela deputada federal Bia Kicis, do PL, explorou essa artimanha: uma senhora de 76 anos teria morrido no ginásio da Polícia Federal, por maus-tratos, depois de ser presa com a legião de 1.500 bolsonaristas. A foto escolhida em um banco de imagens era de Deolinda Tempesta Ferracini. Ela havia morrido sim, em decorrência de um AVC, em 2022, aos 80 anos, em São Paulo, a léguas e mais léguas, no espaço e no tempo, da mutreta no planalto central do país.

Vovô viu o vice… A turma idosa mereceu toda a atenção do general Braga Netto, candidato a vice-presidente na chapa derrotada do PL, em um encontro com militantes do acampamento de Brasília. No dia 18 de novembro, depois de uma visita ao ainda presidente Bolsonaro, o general sextou em uma roda de fãs e fanáticos. Uma mulher, aos prantos, reclamou da demora para o golpe — “a gente tá na chuva e no sol” —, no que foi consolada por Braga Netto: “Eu sei, mas tem que dar um tempo”, disse, mexendo com a boca como quem triturava um bombom.

Na despedida dos extremistas, uma fala de suspense de filme B de terror: “Vocês não percam a fé. É só o que eu posso falar agora”, disse o militar. A promessa não era vazia. Na quarta-feira, 18 de novembro, o jornalista Caio Junqueira revelou, na CNN Brasil, que interlocutores de Bolsonaro e de Anderson Torres (ex-ministro da Justiça) afirmaram que Braga Netto comandou reuniões para discutir uma reviravolta no resultado das eleições vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva.

Longe deste cronista sexagenário algum preconceito contra determinada faixa etária. Pesquisas recentes, no entanto, mostram que as pessoas acima dos 65 anos são mais propensas a espalhar e também cair nas teias das fake news — inclusive em golpes financeiros aplicados nas redes sociais.

Um estudo norte-americano de 2019 (assinado por Andrew Guess, da Universidade Princeton, e Jonathan Nagler e Joshua Tucker, da Universidade de Nova York) concluiu que os mais velhos compartilham sete vezes mais artigos de notícias falsas do que a turma entre 18 a 29 anos. Divulgada pela revista científica Science Advances, a pesquisa decifrou o comportamento de eleitores dos EUA na campanha de 2016.

O sociólogo Rudá Ricci, em artigo para a revista Jacobin/Brasil, foi buscar no filósofo alemão Erich Fromm (1900-1980) explicações a respeito da atração dos idosos pelo bolsonarismo. Na excelente especulação, Ricci se baseia no livro “Anatomia da destrutividade humana”, no qual Fromm esmiuça como a violência de grupos em meio a uma “guerra santa” contra inimigos imaginários é excitante para pessoas entediadas. Recomendo o texto para o leitor e a leitora de qualquer idade.

Na vida prática das famílias, as prisões e atos violentos do dia 8 de janeiro provocaram turbulências. Localizar os avós ou os pais depois da quebradeira foi um sufoco, como vimos em relatos de parentes nas redes sociais. Defensores públicos do Distrito Federal e de outros Estados de origem dos golpistas se empenharam para liberar, o mais rápido possível, os idosos com problemas de saúde. Uma cuidadosa vigília pela garantia dos direitos humanos — tipo de política odiada pelos frequentadores dos acampamentos da extrema-direita.

Aí vovô viu vantagem!

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Aos leitores e leitoras, meus agradecimentos pela companhia nesta temporada no Intercept. A coluna deixa de ser publicada neste espaço. Aos editores, obrigado pelo carinho e paciência.

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