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Lei do feminicídio deixa de cobrir milhares de assassinatos ao focar só na violência doméstica

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Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

Quando falamos sobre o governo Bolsonaro e a destruição provocada tanto por sua incompetência quanto pela opção deliberada em arruinar, sempre nos referimos a grandes áreas, como a saúde, o meio ambiente, a educação e a segurança, todas arrebentadas na gestão que, felizmente, acabou, porra. No entanto, mais do que uma “área”, quem mais sofreu com a pulsão de morte do ex-presidente tem cara, gênero, classe e cor: mulheres pobres e negras.

Isso fica claro em uma pesquisa recente do Instituto Sou da Paz, pela qual sabemos que sete a cada 10 mulheres assassinadas por arma de fogo no Brasil são negras. O número revela como a liberação de revólveres e fuzis, obsessão do ex-mandatário, trouxe uma nova terrível camada de sofrimento para uma população cuja existência já é mais difícil.

Mas há uma questão pouco iluminada sobre essas mortes, e é sobre ela que os debates feministas e as construções de políticas públicas precisam também se concentrar. Tradicionalmente, tanto as instituições quanto a própria cobertura midiática se voltam para a violência doméstica ou o ódio de gênero como as razões únicas dos assassinatos, deixando de fora as mortes de mulheres ocorridas em outros contextos criminais. Dados de 2020 da mesma pesquisa mostram que os homicídios ocorridos fora de casa corresponderam a 45% das ocorrências de morte violenta por arma de fogo entre mulheres negras. Dentro de casa, esse número foi de 25%.

Essa invisibilização é um dos temas centrais das discussões realizadas pela socióloga Ana Paula Portella, autora do livro “Como morre uma mulher?” (Editora UFPE), no qual publica investigação sobre as múltiplas vulnerabilidades que levam mulheres – e também meninas – negras e pobres a serem mais vítimas da violência letal. A pesquisa levou em 2016 o primeiro lugar no 5º Concurso Internacional de Teses sobre Segurança Pública, Vitimização e Justiça na América Latina e no Caribe, além de uma menção honrosa no Prêmio Capes de Teses em 2015.

Para sua autora, o presidente Lula e a ministra da Mulher Cida Gonçalves precisam centralizar, com urgência, essa população nas políticas do novo governo. “São pessoas que vivem em áreas precárias de grandes cidades brasileiras, lugares de intensa desorganização social, com ausência de serviços públicos e onde não há controle da violência. Podem ser locais controlados por grupos criminosos, como é o caso do Rio de Janeiro, do Ceará, de São Paulo, onde você tem uma dominação territorial de certos grupos, e podem ser áreas como aqui, em Pernambuco, onde não há a dominação territorial, mas a atuação relativamente difusa de grupos criminosos. Nesses locais, não existem ações que levem à prevenção da violência criminal e há uma certa permissividade para a ocorrência de outras formas de violências”, me disse Portella.

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“Nas áreas onde não há ações de controle da agressividade, da violência, é mais provável que conflitos resultem em homicídios, seja por arma branca ou de fogo”, afirmou a socióloga Ana Paula Portella.

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Ela citou como exemplo as brigas e disputas ocorridas em ambientes de uso de drogas ilícitas, principalmente envolvendo o crack. “Nessas áreas onde não há ações de controle da agressividade, da violência dos mais diferentes tipos, é mais provável que conflitos resultem em homicídios, seja por arma branca ou de fogo. E as mulheres fazem parte dessas comunidades. Elas são filhas, namoradas, irmãs, amigas, mães, noivas, dos homens que protagonizam esse tipo de conflito. Elas também, muitas vezes, fazem parte do cenário, tanto no uso do crack quanto no crime em si. São esposas que vão aos presídios, que cumprem mandatos por conta dos companheiros, são vaporzinhos, traficam, fazem pequenas tarefas para o mundo criminoso”.

Portella aponta aí para um ponto ainda pouco relacionado à questão da violência de gênero: a presença ou a ausência da urbanização, uma vez que, quanto mais alto é seu grau de precariedade, mais abre-se a chance para que a população, e principalmente aquela formada por crianças e mulheres, seja exterminada. Isso porque o controle da violência, ao contrário do que prega o senso comum, não se dá somente por ações da segurança pública, mas também pela existência de elementos como serviços públicos, comércio, boa iluminação, praças, hospitais, transportes.

“Há mais gente circulando, há um lugar para onde você, caso ameaçada, possa correr, chamar um táxi, pegar um ônibus. Tudo isso são elementos que dificultam a ocorrência de violências, pode-se pedir socorro, então antes que o ataque seja letal, o processo pode ser interrompido. Nas áreas precárias, esses obstáculos não existem, então diferentes tipos de agressão podem correr soltos. E as mulheres que vivem nessas áreas, majoritariamente pobres e negras, estão mais expostas a isso”.

Culpabilizadas pela própria morte

É urgente, no debate sobre a preservação da vida das mulheres cisgêneras ou transgêneras, uma ação pautada tanto pela interseccionalidade – de raça, classe, gênero, territórios – quanto pelo entrecruzamento de variadas pastas que devem conversar, a nível federal, com o Ministério da Mulher. Sem entrecruzar as formas de opressão que marcam de diferentes maneiras as mulheres, milhares de assassinatos continuarão acontecendo “fora” do que se caracteriza como feminicídio.

“A invisibilização de tantas mortes também está relacionada ao feminismo liberal e branco na mesma medida que ele é parte das camadas dominantes da sociedade. Mas esse fenômeno é antes de tudo produto de uma visão de toda sociedade brasileira. Nela, as meninas e mulheres negras e pobres são associadas, assim como os jovens rapazes negros, a comportamentos desviantes e condutas criminosas, que justificariam a violencia que sofrem. São vistas como cidadãs menos importantes, podendo-se dizer, portanto, que não alcançam o mesmo nível de legitimidade social das vítimas brancas e ricas no que se refere ao direito à vida”.

São duas as âncoras, na opinião da socióloga, que colocam essas mortes por “armas brancas” (facas, machados, tesouras, pedras etc.) ou armas de fogo sob a sombra: a principal é o próprio sistema de segurança e justiça, secundado pela mídia e, particularmente, a imprensa que cobre casos policiais. Elas atuam conjuntamente no processo de estigmatização, fazendo um retrato de pessoas que não têm nem mesmo o direito de serem vítimas, assim como acontece tantas vezes com mulheres nos casos de violência doméstica que são culpabilizadas pela própria morte (abordei a canalhice da cobertura policial nesta coluna). Todas são previamente julgadas e condenadas, mesmo assassinadas, como observou a socióloga.

‘A construção do termo feminicídio é importantíssima para demarcar um tipo de violência letal, particularmente na América Latina’.

Somado a esse cenário, está um ponto crucial: “A lei do feminicídio tem sido aplicada quase que exclusivamente para a violência doméstica, deixando de lado cerca de metade das mulheres que são assassinadas. Não é um problema da lei, e sim da sua aplicação. Mais uma vez, é a questão do recorte, da seletividade de gênero, classe e raça, e de como as instituições públicas – que foram desmontadas nesses últimos quatro anos – ignoram essas mulheres, em sua maioria negras e pobres, associando-as à criminalidade.”

A crítica construída pela socióloga não serve, entretanto, para diminuir a importância da legislação sobre o feminicídio, crime tipificado em 2015, no governo Dilma Rousseff, e que alterou o Código Penal e a Lei de Crimes Hediondos. “A construção do termo feminicídio é importantíssima para demarcar a existência de um tipo de violência letal contra as mulheres que se destacava muito da violência doméstica tradicional, especialmente em áreas conflagradas pelos conflitos armados e pela violência criminal, particularmente na América Latina”, pontuou Portella, lembrando que os sucessivos e terríveis casos de assassinatos de mulheres em Cidade Juarez, no México, são a matriz da construção do termo.

Depois, o movimento feminista latino-americano percebeu que o contexto da violência de gênero reproduzido naquela cidade (mote do excelente livro 2666, de Roberto Bolaño) pipoca em diferentes países da região. Recife, como lembra a socióloga, foi uma das cidades estudadas para se pensar o conceito.

“Politicamente, era muito importante que a gente tivesse um termo para caracterizar esses casos, algo que fosse suficientemente forte para acionar movimentações políticas capazes de fazer alterações legislativas. Quero dizer que é uma ferramenta para a mobilização e para a implementação de políticas públicas que possam atender aos contextos dos diferentes países da região”, explicou. “Antes, era algo entendido como problema da esfera privada, que não deveria ser resolvido pelas estruturas do estado. Tanto a legislação da violência doméstica quanto a do feminicídio são ferramentas de visibilidade, são legislações impositivas, elas obrigam as instituições a agirem”.

Damares Alves, senadora

Outro ponto dramático e que muitas vezes escapa no combate à violência contra mulher é a proteção das meninas e adolescentes, as maiores vítimas de estrupro no país. Em junho do ano passado, o Anuário de Segurança Pública de 2022 mostrou que, somente em 2021, mais de 52 mil brasileiras foram estupradas, 70% menor de 14 anos – ou seja, pessoas incapazes, perante a lei, de consentir ao ato sexual.

A pandemia, que obrigou muita gente a permanecer em casa, agravou o cenário e, em conjunção com a desastrosa administração da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, explodiram. “Esta é uma questão gravíssima que precisa ter imensa prioridade no novo governo. As crianças foram inteiramente desprotegidas nesses últimos quatro anos. Tínhamos começado um trabalho importante desde a gestão FHC. Mas, já a partir da destituição de Dilma, as políticas públicas voltadas para a infância começaram a ser desmontadas. Devem voltar a ser prioridade, também tratadas de maneira transversal”, afirmou Portella. Como exemplo, ela citou a rede de assistência e atenção a mulheres vítimas de violência, arrasada na gestão Damares, que não gastou nem a metade do orçamento de R$ 853,3 milhões do ministério em 2020, fazendo com que o Ministério Público Federal abrisse um inquérito.

“Existe um modelo de política que já foi implementado e bem-sucedido. Ele precisa agora ser revisto, pois era muito focado na questão da violência doméstica e, hoje, a gente já tem subsídios suficientes para fazer uma revisão de forma a priorizar as meninas negras, jovens e pobres nas áreas socialmente precárias. Acho fundamental que essas políticas sejam articuladas às demais ações de assistência social, de educação, emprego e renda, igualdade racial, moradia, saúde. Um conjunto de ações que não são diretamente voltadas para a questão da violência, mas que são essenciais para prevenir que ela ocorra. Isso acontece sobretudo com a implementação de políticas que propiciem o bem viver, uma vida digna, que ofereça renda e trabalho justos”, destacou.

Damares entra em confronto direto com a ministra da Mulher Cida Gonçalves, que já declarou a defesa do aborto legal.

Um empecilho provável na ampliação de mais segurança para as mulheres é a citada Damares Alves. Eleita senadora do Distrito Federal pelo Republicanos com mais de 700 mil votos, ela anunciou como pauta o mesmo discurso demagógico que teve como ministra: o da “defesa da família, da vida e das crianças” – lembremos que por “defesa da vida”, a senadora entende, por exemplo, o impedimento do aborto legal de uma criança de 10 anos grávida após estupro.

No cargo, Damares entra em confronto direto com Cida Gonçalves, que já declarou a defesa do aborto legal e deve receber as demandas de diversos setores para ampliação da interrupção da gravidez em casos ainda não previstos na lei. A nova posição de Damares, no entanto, é vista sem alarmismo por Ana Paula Portella. “No Senado, você tem o contrabalanço com outros parlamentares democratas. Era muito pior a presença dela como ministra. E mais: temos a vantagem de saber quem Damares é, ou seja, o setor está preparado para lidar com ela, pois já a enfrentou antes”, disse Portella, sublinhando que é preciso fazer uma vigilância silenciosa sobre a senadora e outros membros do Legislativo cuja atuação limita ou impede conquistas das mulheres.

“Mas não temos que dedicar toda nossa energia a isso, já gastamos muito nesses quatro anos e temos um enorme trabalho de reconstrução. Não devemos baixar a guarda, mas, ao mesmo tempo, essas pessoas não devem ser o nosso foco principal. Já nos fizeram um mal imenso. A extrema direita precisa ser cercada e vigiada – mas a gente tem que cuidar da vida”.

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