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‘Lula precisa criar Agência Nacional de Armas de Fogo e banco de dados único’, diz policial federal

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Foto: Reprodução/Facebook

No dia em que tomou posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpriu uma de suas promessas de campanha e revogou uma série de normas do governo Jair Bolsonaro que facilitavam e ampliavam o acesso indiscriminado da população a armas de fogo e munições – muitas delas, outrora de uso restrito a forças policiais.

CACs – como são chamados caçadores, atiradores desportivos e colecionadores – influencers e recém-eleitos chiaram nas redes, mesmo que os pontos mais temidos, como a retirada de armas de circulação e fechamento de clubes de tiro, não tenham sido estabelecidos pelas novas regras. Pelo contrário, alguns especialistas acharam as mudanças bem moderadas.

Para o policial federal e especialista em Gestão de Segurança Pública e Justiça Criminal que participou da transição do governo Lula, Roberto Uchôa, esse primeiro decreto serviu apenas para dar um freio ao que ele chama de “farra armamentista”. Senadores da oposição anteciparam a intenção de derrubar as novas normas por projetos de decretos legislativo. Os PDLs podem revogar normas do Poder Executivo, mas precisam ser aprovados pelas duas casas do Congresso Nacional. Ou seja, não é um trabalho fácil ou rápido.

“Com a suspensão de novos registros de CACs, aquisições de armas e de registros de clubes de tiro, o governo deixou claro que reconhece haver um grave problema no controle e fiscalização do mercado legal de armas”, explicou, em entrevista ao Intercept, o conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança e autor do livro “Armas para Quem? A Busca por Armas de Fogo”.

Para ele, como o decreto foi de certa forma emergencial, o objetivo não era melhorar a regulação do mercado, o que será feito por meio de um grupo de trabalho futuro para discutir a elaboração de uma nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento. Mas a medida “é essencial depois do caos normativo criado por Bolsonaro”, ressaltou. O número de armas nas mãos de CACs já bateu a marca de 1 milhão, e a categoria já supera o total de PMs e de militares em todo o Brasil.

Confira os principais trechos da entrevista:

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Foto: Reprodução

Intercept – O Exército tem, entre suas responsabilidades, gerir informações sobre CACS, mas assumiu que não sabe o tamanho do arsenal na mão da categoria em cada cidade brasileira. A Polícia Federal fica com outra parte da informação. Como ter uma política pública sem informação, nesse campo tão sensível?



Roberto Uchoa – Há um problema no país relacionado ao controle de bancos de dados. Muitas instituições públicas tratam os bancos de dados sob seu controle como verdadeiros patrimônios e resistem a compartilhar informações contidas neles. O Exército parece sofrer do mesmo problema. Foram quase 20 anos simplesmente ignorando determinação legal [do Estatuto do Desarmamento] sem ter sofrido nenhuma punição por isso. Acredito que isso só vai ocorrer agora porque já ficou provado que os militares não têm capacidade para controlar e fiscalizar a parte do mercado legal de armas de fogo sob sua responsabilidade. Porém, acredito que passar essas atribuições para a Polícia Federal não será a solução.

Por quê? Qual é então a solução?



A PF tem grande carência de servidores e não tem estrutura adequada para absorver mais atribuições. Como a fiscalização e controle de armas não é atividade fim nem do Exército, nem da PF, essa atividade tem sido sempre deixada de lado. A saída, a meu ver, é a criação de uma agência nacional de armas de fogo ou uma secretaria vinculada ao ministério [da Justiça e da Segurança Pública], focada em controlar e fiscalizar todo o mercado legal de armas de fogo, com banco de dados único e compartilhado com todas as instituições policiais do país. Não dá para elaborar uma política de segurança pública municipal adequada, por exemplo, quando sequer é possível saber quantas armas de fogo há na região.

‘Um atirador desportivo poder adquirir 180 mil munições por ano sem rastreamento é injustificável’.

Na sua pesquisa que deu origem ao livro, em clubes de tiro em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, você constatou que metade dos frequentadores não participavam de competições. Há CACs então que não são CACs?

Durante a pesquisa, observei que um novo público estava se registrando como CAC apenas para possuir armas de fogo. Não eram pessoas interessadas na prática do esporte, e isso aconteceu em razão da criação do porte de trânsito, ainda no governo Temer em 2017. Chamado no meio por “porte abacaxi”, na verdade, era a permissão para que o atirador desportivo fosse e voltasse de sua casa ao clube de tiro com uma arma municiada e pronta para uso. Isso foi uma novidade, já que a regra era que a arma fosse levada em uma caixa, sem munição, para ser municiada somente no clube. A medida fez com que várias pessoas que tinham o interesse em andar armadas se tornassem CACs e se filiassem a clubes de tiro com esse objetivo. Isso ficou evidente também quando constatei que que a grande maioria dos CACs ia no máximo 10 vezes por ano ao clube, um pouco mais do que as oito vezes obrigatórias para manter o registro de atirador. Em 2021, foi aberto mais de um clube de tiro por dia. Posso afirmar com segurança que a grande maioria dessas pessoas que se registraram como CACs não tem interesse no esporte.

Vemos muitas notícias sobre CACs repassando armas para traficantes, milicianos, assaltantes de bancos. Os mecanismos de fiscalização e controle acompanharam a demanda vinda com o aumento do acesso a armas e munições?



A conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo nunca foi tão intensa como atualmente. A todo momento surgem notícias de criminosos tendo acesso a armas adquiridas legalmente e, para isso, aproveitam várias brechas na fiscalização dos militares, se é que podemos chamar isso de fiscalização. São casos de uso de terceiros para aquisição de armas, os famosos laranjas, aluguel de armas para uso em empreitadas criminosas e até mesmo criminosos se registrando como CACs para adquirir armas. Na festa das armas, o crime organizado foi um dos principais convidados. Um argumento comum utilizado por armamentistas é que criminosos sempre tiveram acesso a armas de fogo e que não teriam por que ir atrás de armas no mercado legal. Porém, só esquecem de pontuar que um fuzil no mercado ilegal custa cerca de R$ 60 mil, e um fuzil T4 [legal] da Taurus pode ser comprado por até R$ 20 mil, um bom desconto, e ainda é entregue onde o comprador estiver, sem necessidade de passar por aeroportos, portos e estradas. Um sonho para qualquer criminoso, comprar um fuzil mais barato, com garantia e entregue em casa.

Quais os impactos para a segurança pública destes quatro anos liberando armas e munições outrora restritos a policiais e militares?



Isso é péssimo e, se formos falar sobre o mercado de munições e o fato de elas não serem numeradas como as armas de fogo, aí é um verdadeiro pesadelo. A possibilidade de um atirador desportivo adquirir a cada ano até 180 mil munições e 20 quilos de pólvora –que dariam para recarregar cerca de 40 mil munições –, sem possibilidade de qualquer tipo de rastreamento, é um absurdo que não tem justificativa. Espero que esse ponto seja tratado com muita profundidade no grupo de trabalho.

Com tantos armamentistas eleitos, alguns deles apoiados abertamente pelo Proarmas, como serão as decisões tomadas nesse campo?



Acho que o grupo Proarmas terá menos impacto do que muitos acreditam. Há uma percepção entre muitos CACs de que a maioria dos eleitos utilizou o debate armamentista e a fixação de Bolsonaro sobre o tema para conseguir a eleição e que a prática cotidiana no parlamento difira dos discursos. Claro que irão continuar a bravejar, acusar e defender o armamento da população, mas acredito que surgirão cisões e intrigas entre os próprios, algo que já tem ocorrido de certa forma.

Com os incentivos à abertura do mercado de armas e munições a fabricantes internacionais, a Taurus trincou o monopólio que detinha no Brasil. Mas agora, o presidente da empresa, também presidente da Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições, buscou diálogo com Lula e propôs restrições à importação. Como você enxerga isso?



Confesso que, quando li a carta da associação, fiquei curioso ao ver o apoio a restrições e a concordância de que o mercado legal de armas de fogo precisa ser melhor regulado. Inclusive apoiam a iniciativa da criação de uma agência nacional de armas que iria centralizar tudo relacionado ao mercado. Acredito que seja como o ditado diz: para não perder o braço, entrega-se a mão, porque, enquanto defende maior regulação, [a indústria] busca a volta do monopólio sobre o mercado, algo que existia desde 1965.

Não podemos demonizar a indústria armamentista. Não há problema nenhum em termos uma indústria forte que gere empregos e divisas para o país. que não podemos admitir é que sejamos um dos poucos países com uma forte indústria armamentista e que sofra com uma verdadeira epidemia de mortes por armas de fogo. Acredito que também não seja interesse deles que essa violência continue. É um sinal interessante e acredito que esse diálogo deve ser feito, mas sempre considerando o interesse da sociedade. Uma parceria da indústria com o poder público seria muito bem-vinda.

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